Década de 80, pré-adolescência.
Não entendia ainda muito do mundo que me cercava, mas percebia que, todos os dias ao acordar, meus pais já tinham desaparecido.
À noite, situação semelhante. Até os meus 11 anos, sempre dormi antes deles.
Aos 15, comecei a encontrar meu pai todos os dias no trabalho e a entender como funcionava a hierarquia profissional.
Para mim, uma oportunidade gigantesca.
Lembro que comecei a me interessar pelo mundo da tecnologia na tentativa e erro… e ele, aprendendo também, pedia-me frequente o manual das coisas. A percepção de causa e efeito, da realidade ordenada.
Era um mundo de obediência, de submissão, execução, horário para chegar e para sair.
Trabalhar significava estar presente e seguir as regras.
Minha mãe deixou de trabalhar mais ou menos nessa época por questões de saúde, mas ele seguiu firme e forte até a aposentadoria, 15 anos depois.
Conviver com ele durante a aposentadoria melhorou muito o nosso relacionamento e trouxe a oportunidade de compreender melhor o mundo em que ele desenvolveu a carreira.
E aqui, começa uma dicotomia curiosa.
Eu peguei a transição da filosofia de trabalho do meu pai para outra. A transição da presença das 8 às 18 como métrica de produção para a suposta entrega de resultados.
Expediente deixou de fazer sentido.
A obediência cedeu ao desempenho.
Para alguns, uma evolução. Um sinal de liberdade, ser dono do próprio nariz e independência.
Entramos na era da autonomia, da motivação intrínseca e da [auto]responsabilidade.
Sim, poderia usar aqui o termo “autorresponsabilidade”, mas acredito que responsabilidade atribuída não é responsabilidade; é culpa.
Em outras palavras, responsabilidade deveria sempre ser autorresponsabilidade. Se não for protagonizada, perde o sentido.
Sim, falei isso pra provocar mesmo.
Quarenta anos atrás, o senso de responsabilidade estava intimamente relacionado ao senso de dever, de cumprir com as obrigações, com obediência. Hoje, a responsabilidade está relacionada a si, a identidade.
Pode parecer em princípio que estou falando de um caminho correto e outro errado. Mas não é isso.
São questões distintas, com efeitos colaterais e implicações diferentes, adequadas às suas respectivas culturas e realizações sociais.
Por um lado, enquanto temos o sujeito de obediência preparado para os rigores da vida, ocupado e submisso, com identidade imutável e explorado externamente, por outro, temos o sujeito de desempenho, suficiente e autônomo, com identidade flexível e explorado por si próprio: o mundo o excita e provoca a busca por superação que não tem fim.
De um lado, temos o “ser melhor” associado ao cumprimento do obrigatoriamente estabelecido (externo); do outro, associado a si, a estar diferente de ontem e, por algum conjunto de métricas vis, a comparação de mim comigo mesmo em busca de um ideal de evolução ditado pelo externo.
Vê-se liberdade, tem-se prisão auto imposta; o algoz de si mesmo.
Neste último caso, a quem reivindicar uma mudança, se existe uma associação de evolução própria (ser melhor) com um objetivo máximo a ser alcançado, mas que atende a necessidade do status quo?
De fato, temos o atendimento às necessidades do status quo nas duas culturas.
Temos a ausência de liberdade, embora por motivos distintos, nas duas também.
A diferença é que, atualmente, temos a sensação, a impressão e a clara percepção de liberdade.
Somos levados a acreditar, através da crença do protagonismo, estar totalmente responsáveis por tudo que nos acontece e por todos os resultados que obtemos ou podemos potencialmente obter.
Mas isso simplesmente não é verdade.
Há muita coisa que nos foge ao controle (o que nem é tão importante assim, para fins de entendimento e argumentação). É, contudo, importante perceber o controle que o status quo exerce sobre a nossa existência e não nos damos conta.
É justamente por isso que achamos que temos liberdade.
Volto a uma questão que tenho levantado aqui no blog e em vídeo:
Você acha que ter liberdade é ter escolhas?
Se as suas opções são escolhidas por uma outra parte ou interesses alheios previamente, ainda acharia ser liberdade o ato de escolher?
Se você já leu o sensacional “Sociedade do Cansaço”, de Byung-Chul Han, está familiarizado com alguns dos termos que usei.
Longe de mim recriar a roda. Minha intenção aqui é convencê-lo a ter uma experiência com esse conteúdo, fazer uma crítica de um dos livros mais provocativos e transformacionais que li nos últimos anos e permitir que tire as suas próprias conclusões. Saiba de antemão que não é uma leitura simples e indolor.
“O burnout (…) é a consequência patológica da auto exploração.”
Byung-Chul Han
Das últimas conversas que consegui ter com meu pai sobre questões profissionais, causou-me estranheza perceber que ele não entendia como alguém exerce a profissão sem estar presente das 8 às 18.
Para ele, o conceito foge completamente ao entendimento e agora eu sei o motivo: aprendi que as barras da prisão de outrora apenas ficaram transparentes.