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Ju e Carlos: Um Olhar Perene, Uma Jornada

Jornada.

Quando leio um livro, uma das seções que mais me fascinam é a de referências porque, afinal, são exatamente isso: as influências, as ideias da fonte, a linha de raciocínio original que deu margem à reanálise, a reinterpretação, à evolução conceitual.

Antes do lançamento do livro “The Infinite Game” de Simon Sinek, ele passou talvez mais de um ano no processo de evangelização do conteúdo, o que incluiu a agradável referência do estudo base de James P. Carse sobre jogos finitos e infinitos.

Podemos afirmar que Simon Sinek estendeu o trabalho de James P. Carse, mas deu sempre o devido crédito (algo raro hoje em dia). Ainda à época, li em um blog na Internet um resumo do conceito bastante interessante… que você pode também ler clicando aqui 😉

Jornada.

Jogo infinito.

Chega uma época em nossas vidas que as metas e objetivos (os jogos finitos) começam a ser percebidos como consequência do jogo infinito jogado.

A nossa atenção sai do chegar, da pressa, da conquista e o prazer começa a ser extraído da jornada, dos pequenos detalhes, das coisas maravilhosas no nosso dia a dia que passam geralmente despercebidas… mas que permitem ser apreciadas quando o foco deixa de ser o chegar.

Contei a nossa história anteriormente e ler aquele texto trouxe uma sensação gostosa demais.

Pontuado de momentos sublimes de percepção aflorada, reafirmam a importância da jornada, do jogo infinito.

E quando pergunto “até quando?”, a resposta em forma de pergunta é emblemática: “realmente importa?”

Jornada.

Mudaria, contudo, algo na percepção de três parágrafos à frente, sobre finais felizes.

Que não haja foco em final. Que o foco seja na jornada, no abraço desejado por ser diário, mas eventual pela distância.

Que a percepção de um final encerre-se no desejo das ações diárias e perenes.

Que as dificuldades e desafios sejam comemorados na companhia, na percepção de apoio e de porto seguro.

Que o “estar” seja traduzido em “ser” na compreensão do momento presente como plano para a estrada, mas exercido de forma plena e livre.

Liberdade para caminhar em conjunto com reciprocidade, compreensão e não apenas troca ou negociações.

Jornada.

Que nossos jogos sejam infinitos e alinhados Rebecca, ops, Ju, neste dia dos namorados.


Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha dos nomes da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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16+ Ficção

Márcia

Aviso: este é um texto 16+. Nada que a nossa TV contemporânea já não aborde em qualquer horário, mas se você tem questões com violência e palavrões, sugiro não continuar.


 

Caceta, que susto! – Júlia escuta uma porta batendo com o vento.

Estranho… pareceu outra coisa.

Enfim… – pensa. Acomoda-se novamente no sofá.

(…)

Um dia antes...

Márcia tem uma arma na cintura.

Enquanto está no coldre, não há ideia de autodestruição… exceto talvez por uma ou outra manifestação perene, como roer as unhas… e arrancar fios de cabelo.

Estresse.

O dia passa numa corrida contra o tempo.

Noites mal dormidas, dias frenéticos em busca de si e de justiça para um passado que não volta.

Autoafirmação desejada e exercida, publicada e reconhecida, nunca alcançada.

Perseverança – valida ela, mentalmente.

Persona, dizem.

Chega em casa, abre a porta.

Ela percebe um vazio, quase repleto de dúvidas.

Seu lar é bem diferente do que sente por dentro.

Descolamento. Eus distintos, interno e externo, percepções misturadas e contraditórias.

Se você entrar em seu apartamento, perceberá uma estética quase impecável.

Coerente.

Cores harmoniosas. Quadros e retratos alinhados à perfeição falam sobre um passado fora do alcance.

Um sofá vinho na frente da TV, um tapete creme confortável… almofadas entre amarelo e vermelho convidam ao ato de se jogar.

Um par de cadeiras sóbrias contrastam com a palheta e com o chão em madeira.

Silêncio.

Mas o sinal de uma eventual mudança é percebido ao focar no horizonte.

Uma varanda fechada com vasos e plantas… esquecidas.

Galhos secos que por semanas suplicaram por água, atenção e que agora combinam ironicamente com as cores da sala.

Será que a estética deste universo contido entre paredes existe apenas pela falta de ação ou esquecimento?

Ou reação?

Ou incômodo?

Eu não sei dizer.

Talvez Márcia saiba, no fundo… mas ignora.

Um ambiente preservado pela indiferença, exceto pela morte óbvia na sacada.

Ela entra no quarto e vê a cama desforrada… como há semanas.

Sente um aconchego tão fulminante quanto a necessidade de livrar-se das roupas que voam em direção ao canto atrás da porta.

O coldre vai ao cofre e, no exato momento em que vê a sua mão depositá-lo naquela caixinha, lembra de algumas das cenas marcantes e insolúveis que permeiam o seu dia a dia. Hoje foi especialmente difícil.

Preciso de uma ducha – pensa.

Depois de experimentar talvez o banho mais quente da sua vida, ela cai na cama com o celular na mão, na intenção não realizada de criar, estimular ou manter alguma relação social com qualquer pessoa que seja… mesmo através de uma tela de poucos centímetros… um aparelhinho repleto de imagens, letras e sons que deixam de fora tudo aquilo que ela mais precisa no momento:

Um toque, um abraço e a presença silenciosa de alguém.

Há uma desconexão em andamento por meses. Há uma separação de quem é do que representa. Da imagem que passa.

Mas antes que quaisquer interações tenham a chance de ocorrer, a agitação mental cede ao inconsciente e ela apaga.

(…)

De repente, um susto: como que sendo abduzida do corpo mais ao contrário, o som odioso do despertador acontece.

Que merda.

Sete horas de sono não são o suficiente.

Não têm sido, pelo menos para ela.

Não sente nem que dormiu.

A cozinha de Márcia é uma verdadeira ode ao prático e ao eficaz, junto daquilo que, na sua concepção, é o mais efetivo para tirá-la do torpor matinal.

Cambaleante, pega um café e o celular.

Vinte e duas mensagens, um story sorridente nas redes sociais e três canecas de café depois, sente que acordou. Morde uma maçã e abre um energético, seu companheiro até a delegacia.

Banho, roupas, maquiagem, aparência perfeita.

Trinta minutos se passam do salto do sofá vinho à chave na porta de casa.

Entre um e outro, tira o coldre do cofre, olha para a sua mão novamente e lembra como será, até o fim de mais um dia.

Mas não hoje.

Hoje será diferente.

(…)

Não dá para saber em qual momento exato, entre a lembrança antes de sair de casa e o fim do dia, que as coisas começaram a ficar estranhas.

Dor no estômago.

Mãos suando.

Ela enxerga o mundo à sua volta e sabe que ele está lá.

Mas parece distante… distorcido, surreal, sons abafados.

Lembra quando experimentou alucinógenos aos quinze anos pela primeira (e última vez).

Se eu contar a você os detalhes (sórdidos) do dia dela, não fará diferença.

Entre o sangue (literal), o suor (desconfortável) e as lágrimas (quase sempre contidas), um caleidoscópio de emoções reprimidas gira dentro dela, dando sentido à sala intocada, à cama desforrada e à natureza morta da sua varanda.

Os minutos passam, as ocorrências acontecem e a realidade se dissolve em um choro velado e breve no banheiro.

Eu não aguento mais.

Olha-se no espelho, prende o cabelo. Enxuga o rosto.

Sai dali talvez menos do que entrou, mas decidida.

O desenrolar das horas acontece tão indiferente quanto se sente agora.

Decisões têm essa característica… de serem efeitos colaterais de emoções que provocam catarses, mudanças profundas e resolutas que trazem tranquilidade e calma.

Vou por um fim nisso ainda hoje à noite.

(…)

Júlia reinicia a sua série favorita, mas não acredita na fofoca contada pelo barulho que ouviu da suposta porta do corredor.

Devagar, sai de casa… e vê a porta do hall aberta.

Mas a porta de Márcia também está aberta.

Neste exato momento, o ar fica rarefeito e foge do pulmão, assim como o sangue parece desaparecer das suas extremidades.

O frio dá uma volta em todo o corpo e concentra-se no peito e no estômago.

Júlia já tinha sentido essa mesma sensação ao pular de paraquedas.

Ela abre imediatamente a porta e grita por sua vizinha… olha a cozinha, a sala e não encontra ninguém.

Desespero.

Puta que pariu.

Entra no quarto e vê a cena… um quadro incompreensível.

A emoção é tão forte e densa que quase dá pra cortar com uma faca:

Márcia está sentada na cama, chorando compulsivamente com a arma na mão direita e, diante dela, um espelho perfurado pelo disparo.

Ela morreu hoje – balbucia entre lágrimas… quando finalmente ganha o abraço silencioso que merece.

(…)

O coldre com a arma dentro é uma lembrança distante, bem como os arrepios ao tirá-los do cofre.

Márcia lembra, contudo, do momento em que decidiu tirar a vida para finalizar o sofrimento.

Ela lembra da paz e da calma que sentiu do momento da decisão até o instante em que, ao invés de executar o plano, por algum motivo ainda desconhecido, mirou no espelho.

Sem querer, acabou com aquela imagem distorcida de realidade e de identidade.

A mesma decisão que trouxe a calma e apaziguou momentameamente a dor, mostrou o caminho.

De fato, capaz de criar uma jornada completamente nova… que ela passou a viver, apesar de não se sentir especialmente grata por estar viva… mas por ter mudado.

Mostrou que a centelha de mudança dentro dela, que trouxe tranquilidade, também torna possível alterar a própria estrada.

 


“Márcia” é uma ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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Ficção

Pedro

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O despertador tocou à meia noite.

Pedro sabia que estava na hora de ir antes mesmo de bocejar.

Ele abre os olhos, quarto escuro, aperto no peito.

Por um momento, chegou a pensar que a reunião logo mais pela manhã poderia ser algo positivo.

“A vida é louca”, pensa.

Entretanto, os pensamentos seguintes são supostamente racionais e baseados em mais de vinte e cinco anos de carreira.

Experiência que pesa.

Já passou antes por aquele ensaio e… nos últimos quatro anos, aprendeu como ninguém a ler as pessoas.

Veste-se, vai ao aeroporto, embarca.

Tenta dormir, não consegue. Tenta ler, em vão.

Em sua mente, há um sem número de teatros agitados, onde peças de futuros inexistentes repentem-se à exaustão.

Possibilidades, simulações conscientes do que pode acontecer quando, vez ou outra, uma pequena mudança na narrativa cria um novo teatro, uma nova peça, um novo dilema.

Nossa cabeça e a sua incrível habilidade de simular.

Depois de duas horas de vôo, surpreeende-se com um pensamento: como alguns cenários potenciais dias atrás eram carregados de emoções e agora encontram-se ausentes de sensação.

Mas continuam repletos de sentido.

O vôo faz o movimento inverso ao sol. Enquanto pousa, um dia lindo surge pelas janelas do avião, inundando a aeronave com uma luz branca azulada.

É quase possível tocar aquela luz que banha à todos como uma névoa.

Baque, aterrissagem.

Momento presente. Raiz.

Volta à si e agradece.

Por um breve momento, Pedro sente a sensação de gratidão que o faz esquecer de toda a pantomima mental e elocubrações perturbadoras ou não.

“Vamos em frente”, pensa.

No carro, a culpa.

O remoer, o olhar para o passado perguntando a si mesmo o quê poderia ter feito diferente.

Já te conheço, pensa. Sei das suas artimanhas, argumentos e matreirice.

Não obstante, o número de teatros e cenários explode em sua mente, em um fluxo incontrolável de ansiedade e taquicardia.

Então, ele lembra da gratidão e tudo se acalma.

A culpa se encerra por falta de lugar pra ficar.

Lembra do quanto aprendeu. Lembra dos amigos, das conversas, das experiências.

Lembra, principalmente, de ter vivido um ano sem mesquinharia, sem brigas fúteis, sem atritos maiores… sem mal querência.

A gratidão aumenta e supera quase tudo.

Pedro chega, faz o que precisa ser feito e, como esperado, o previsto se realiza.

Para sua surpresa, há calma novamente.

Todos os teatros e cenários desaparecem numa sensação gostosa… um misto de vulnerabilidade e realização.

Como pode ser assim?

Pedro não sabe. Só sabe que se sente vivo e daqui pra frente, há muito trabalho para ser feito.

Retorna para casa mais leve do que nunca…

Pensando que sofrer duas vezes é uma possibilidade bem real.

Mas Pedro já sabia disso: entre saber e exercer, existe mais aprendizado acontecendo a cada segundo.

A cada pensamento, a cada ação.

Qual realidade criamos para nós mesmos?

 


“Pedro” é uma ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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Ficção

Ju e Carlos

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Ju e Carlos definitivamente não foram feitos um para o outro.

Moram longe, são de gerações distintas, histórias complexas, comportamentos díspares, crenças às vezes compatíveis, valores razoáveis. Torcem para times diferentes e votam em candidatos opostos.

Mas se balançam parecido.

Alías, será que isso existe mesmo ou cremos em destino quando faz sentido?

Horóscopo?

Bem, nesse ponto, dizem que combinam.

Mas não importa.

Primeiro, foi um simples “oi, tudo bem?”.

Semanas depois, olhares cruzados.

Uma.

Duas.

Três vezes.

Ela, com suas bochechas altas. Ele, com seu semblante sério.

Dois mundos completamente diferentes em aparente sintonia.

Ela, com seu sorriso de menina. Ele, com ar de descrença.

Não era pra ser.

Ou era.

Ou é.

Sendo ou não, cresceu.

Saiu do olhar.

Passou para uma careta aqui, outra ali.

Ah, as caretas.

Uma frase, uma piada, um sorriso.

Dois sorrisos… vários, coleções de sorrisos.

Um toque, dois três…

Um bem querer.

Dois bem quereres.

Um monte deles.

Mais sintonia, mensagens, uma comunicação natural… uma troca tão gostosa.

Faltava presença.

Mas nem faltava muito assim.

Já havia tanto entre os dois… que encurtar distâncias virou sem sentido.

Entretanto, existia algo mais.

Não só um sentimento crescendo, mas uma saudade também.

E a idade.

Neste quesito, a diferença não muda.

Até aquele dia em que conversaram.

“Eu me preocupo com a nossa diferença de idade.”
“Ela é muito grande, seremos julgados… como será em 10 anos, 20 anos?”

“Eu não me preocupo com isso… algo tão relativo e há tanto para ser vivido.”
“Em poucos dias vivemos tanta intensidade e em dez anos viveremos tanta coisa ainda…”
“O que realmente importa? Sermos quem somos ou satisfazer expectativas?”

“É né…”

Ele nunca esquecerá da naturalidade daquelas palavras, do desejo em continuar e da simplicidade de sua reação quase involuntária.

Com essas três frases, a realidade se refez.

E não havia mais barreiras.

E como as coisas sem limites, continou a crescer.

E como o amor que surge da paixão…
Que surge da empatia…
Que surge do rapport…
Que surge do simples contato…
Que surge de reconhecer a presença mútua… o “eu” em cada um.

A presença, sem estar necessariamente presente.

O compartilhar de ideias.

O bem querer regou esse jardim.

Até quando?

Não sei.

Realmente importa?

Só sei que, da última vez que eu os vi, estavam torcendo por eles e isso me contagiou.

Segui torcendo também porque, afinal, o que é a vida, se não encontros e desencontros…

E uma esperança por finais felizes.

Quando Carlos me contou essa história originalmente, o que mais me marcou foi o “É né” que ele soltou, quando ouviu de Ju que… o que realmente importa são as experiências em conjunto que carregamos.

A reação dele, diante do óbvio que o meu próprio julgamento não quis perceber. Uma constatação tão inocente de uma carga emocional e social tão grande que…

De repente…

Vai embora e liberta.


Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha dos nomes da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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Ficção

Paulo

Conheci Paulo no colégio, quando tínhamos seis anos. Durante aquele período, fomos melhores amigos. Contudo, com a adolescência, mudamos de colégio e seguimos rumos profissionais ligeiramente diferentes.

Os encontros se tornaram mais escassos, mas de melhor qualidade. Preservávamos o hábito de nos encontrar pelo menos uma vez por mês para falar da vida, da família, das lembranças e dos aprendizados… e confesso que nunca vi ninguém mudar tanto, em tão pouco tempo, como ele.

A última vez que nos vimos esse ano foi em fevereiro, quando completou quarenta e três. Ele me disse que olhou para o passado e viu uma vida sem sentido. Olhou para a frente e viu uma vida com propósito. Um contraste desagradável, mas ao mesmo tempo, um alívio, segundo ele.

A primeira lembrança dele vem dos três anos. Estava no quintal de casa, levando uma bronca do seu pai por ter sujado a parede. Ele me falou diversas vezes sobre como o seu relacionamento com os pais era difícil. Não era comum valorizarem as suas conquistas.

Depois de quase quarenta anos, olhar para a infância trazia lembranças partidas. Ele lembra de não ter muitos amigos; lembra de adoecer com facilidade; lembra de viver com sono até os treze anos.

Seu pai, do interior do sul do país, descendência alemã e polonesa, veio para o nordeste exercer a carreira militar; sua mãe, do interior do norte, veio com a família em busca de oportunidades. Ambos filhos de pais brutos… encontraram-se e casaram-se… por fuga de suas respectivas famílias. Digamos que na casa de Paulo demonstrações de carinho não aconteciam.

Ele terminou crescendo uma pessoa fria, extremamente racional e podemos até afirmar que dissêmica . Seus pais fizeram questão de lhe preparar bem para a dureza da vida, sem dúvida alguma. Eu nunca entendi como consegui me relacionar com ele. Talvez pelo seu humor ácido e irônico, bastante diferente do que estava acostumado. Ria pela diferença e sempre achei interessante essa perspectiva rara de humor tão cedo na vida.

Juntando isso ao fato de que ele foi uma criança e um adolescente isolado, não posso dizer que aprendeu a ser carinhoso, pelo menos não com as suas referências familiares iniciais. O desgaste e o conflito crescentes na adolescência terminaram por afastá-lo da família e a se interessar em construir a sua própria. Fui algumas vezes na casa dele e percebi isso em segunda mão.

Por volta dos dezoito anos, a situação estava insuportável para ele: seus pais tentavam controlar todos os aspectos da sua existência, da roupa que vestia, passando pelos amigos e pela namorada até o curso que deveria fazer na universidade.

Para vocês terem a ideia, quando eu tinha meus quinze anos, bebia desesperadamente como a maioria dos adolescentes. Os seus pais tentaram inúmeras vezes minar a nossa amizade e proibi-lo de se encontrar comigo e com a nossa turma, por me considerar uma péssima influência. Foi mais ou menos aí que decidi não ir mais lá.

A sua introversão, junto com a ausência de diálogo, fizera-o procurar emprego cedo e a aceitar praticamente tudo que era imposto, como o vestibular para física porque… seus pais não acreditavam que ele fosse capaz de passar em ciência da computação (no ano seguinte ele passou para provar que podia).

A intenção de Paulo era sair de casa o mais rápido possível. Ele tinha uma meta: casar aos vinte um, para não ter que pedir autorização aos seus pais. Eu estava no auge da esbórnia e não compreendia como uma pessoa poderia “fugir” de casa por não aguentar os pais. Era uma versão de realidade inconcebível para mim.

Ele cumpriu a meta… e iniciou a busca por sucesso material e conforto para sua nova família. Entrou em um ciclo cego de viver os dias da semana em um trabalho suportável, pagar contas, dormir e se esbaldar nos fins de semana. Jornadas diárias de mais de doze horas de trabalho para compensar tantas coisas… para compensar financeiramente o incompensável.

A própria escolha da profissão foi uma questão de agilidade e praticidade: juntou a habilidade com uma referência familiar e de alguns amigos na época, como eu. Investir nisso parecia o caminho mais rápido de sucesso profissional que poderia desenvolver e, quando você está nesse famigerado ciclo existencial, você perde a perspectiva de muita coisa. Não havia tempo a perder: mergulhou de cabeça. Trabalho e fuga. Mergulhou tão profundamente que se tornou um dos melhores profissionais que conheci.

E os problemas de saúde começaram a se acumular. Foram mais de vinte anos assim.

A carreira profissional ia bem quando perdeu o emprego. Foram três anos de depressão e necessidades. Pela primeira vez, percebeu que felicidade e realização são muito mais do que comprar coisas e farrar. Fui na casa dele algumas vezes, tentar tirá-lo do quarto no pico da depressão.

Não consegui fazer muita coisa, mas consegui pelo menos que ele fosse a uma consulta com um psicólogo. Eu hoje me sinto mal por não ter sido mais próximo dele nessa fase, mas me doía ver um ser humano naquele estado. Embrulhava-me o estômago.

Naquela época, ele culpava seus pais por tudo, como disse sabiamente Renato Russo e… isso é um absurdo.

Somos filhos de vítimas. Somos vítimas de vítimas. Descobrir isso abriu toda uma linha raciocínio à sua frente. Ele vinha repetindo o comportamento dos pais fielmente sem perceber. Racional como o pai, explosivo como a mãe, autônomo e independente quando conseguia, como as exigências da vida lhe fizeram.

Sua cegueira durou dos dezoito aos quarenta, assim como seu comportamento de vítima das circunstâncias, de incompreendido e de coitado. O início e o fim do ciclo existencial automático e perverso que um dia fez também parte da minha vida. Convenhamos, acho que faz parte da de todos, em algum momento.

Voltando um pouco, ele se separou em 2005, quando passamos a nos encontrar com mais frequência. Como ele mudou – perdeu peso, passou a se alimentar direito e a se exercitar; voltou a morar com os pais, deixou de fumar e melhorou consideravelmente de vida. Apesar de ainda viver naquele ciclo existencial na época, passou a dar mais atenção à própria existência.

Mas foi em 2015 que ele começou a se transformar em outra pessoa, quando passou a questionar o seu próprio ciclo existencial.

Lembro de uma de nossas conversas onde ele me disse que se arrependia de muitas coisas… de ter casado cedo, de ter vivido uma vida voltada ao material e talvez até da profissão. Argumentei que isso poderia ser reflexo da crise dos quarenta… ele concordou, apesar de fazer uma ressalva: que tinha passado a enxergar outra pessoa no espelho e, na época, não sabia ainda se isso era bom ou ruim.

Ao longo dos últimos dois anos, ele começou a investir seriamente em seu desenvolvimento como pessoa e em autoconhecimento, algo do qual tinha preconceito. As mudanças foram tão grandes e tão abrangentes que ele passou a me aconselhar, um fato inédito! Foi por causa dele que também comecei a me interessar pelo autoconhecimento, chegando a mudar de emprego e passando a ser uma pessoa bem mais realizada… rompendo o meu próprio ciclo existencial. Até o meu relacionamento com minha esposa e meus três filhos mudou para melhor.

Em fevereiro, durante a nossa conversa, ele me confidenciou estar vivendo a melhor fase de sua vida: verdadeiramente empolgado por ter encontrado seu próprio “eu” e sua missão… ele afirmou: “compadre, eu nasci para ajudar as pessoas. É com isso que me realizo! Demorou, mas me achei!”

(…)

Não trabalho de terno. Meu emprego me dá uma certa liberdade, principalmente no que diz respeito ao meu guarda-roupa.

Abri a porta do armário à procura de algo preto. Algumas camisas de rock do Metallica, uma calça jeans e só. Pensei “Vou assim mesmo”, afinal, era como ele me conhecia: bem à vontade.

Ontem recebi a ligação da sua esposa. Paulo sofreu um acidente de carro ao retornar de uma viagem de negócios. Seu enterro é hoje.

Depois de conviver dois anos com uma nova pessoa, penso em quanta gente ele deixou de ajudar com seu novo propósito. Penso na vida nova que ele mal teve tempo de exercer… apesar de acreditar que, no caso dele, não foi tarde demais. Ele se encontrou a tempo. Ele fez a diferença em sua própria vida e na vida de muita gente antes de partir.

Como ele mesmo me falou várias vezes, tem gente que nunca acorda. Eu acordei graças ao despertar dele mesmo e sou eternamente grato, apesar de não conseguir parar de pensar em quanta gente passa pela vida anestesiado. Fico imaginando a vida que ele poderia ter levado e quantas pessoas mais poderia ter tocado.

Mais uma vez gratidão, Paulo. Vá com Deus.

(…)

E pra você? Ainda dá tempo?


“Paulo” é uma ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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Aline

Uma das minhas primeiras lembranças é aprendendo a andar de bicicleta.

Pedi logo para meu pai tirar as rodinhas.

Nossa, como caí! Mas sempre levantava. A materialização da evolução e do aprender.

Arranhada, dolorida e cada vez mais determinada.

Essa determinação nunca me deixou. Agradeço a ela pelas maiores conquistas que tive até o momento!

Quando sofri bullying na escola, minha determinação se transformou em beligerância e eu mesma resolvi a questão.

Na migração para a adolescência, meu verdadeiro eu começou a aparecer. Cores!

Este jeito único de ser, de se comportar, quebrando padrões, tabus e deixando os tradicionais à minha volta consternados.

Sim, cores! Cores para todos os lados… na roupa, na casa, na bolsa, na escrita, nas unhas e na vida!

Curioso como a determinação pode se transformar em diversas coisas…

Mais curioso ainda é como ela surge de uma motivação sincera de ser quem sou, a partir dos meus valores… Sem restrições.

Mas o fim da adolescência trouxe um desafio maior e as restrições chegaram.

Hora de colocar as cores numa gaveta. Colocar minhas escolhas de lado e ser conforme.

A universidade chegou como uma condição. Uma condição compulsória de atender à tradição familiar por Direito.

Eu tive muita autonomia em toda a minha vida, até este momento.

Fiz escolhas conscientes. Fiz besteiras também.

Mas nunca tive a experiência de ser obrigada a seguir um caminho que não escolhi.

Se você é de aquário, entenderá perfeitamente o que eu falo.

Foram cinco anos de esforço e adequação.

Aqueles cinco anos me mudaram como pessoa. Eu tentei ser outro alguém e… Consegui.

As cores se foram, a determinação diminuiu, a irreverência desapareceu, as roupas ficaram sem graça e as unhas cor de pele…

Mas não o suficiente para inibir a minha habilidade de dar o melhor de mim.

Fui doutrinada a um paradigma de perfeição estabelecido pelos outros.

Os argumentos conscientes e inconscientes foram muito convincentes.

Eu passei a acreditar naquele ideal de vida, ao ponto de me formar e continuar insistindo em um caminho que não era o meu…

Foram quase doze anos vivendo uma realidade que não era a minha.

Mas o despertar acontece e o conflito gera uma dor maior do que a dor do novo.

E quando isso ocorre, acordamos. Mudamos. Evoluímos.

Despertei para quem realmente sou, para minhas escolhas e ideais.

As cores voltaram! A irreverência! Saudades de vocês queridas!

As roupas mudaram, o corte de cabelo também!

A felicidade retornou para minha face de forma autêntica e irrefreável…

Entretanto, ir contra os paradigmas e os ideais de perfeição e conformidade dos outros gera conflito também. Desta vez externo.

Os argumentos contra a mudança proliferam muito rápido.

Cada pessoa que verbalize sua opinião de comportamento, espelhada em seus valores e em sua própria imagem.

Cada um que dê pitaco na minha minha vida e me diga o que devo fazer.

O julgamento acontece e por quem você menos espera.

Foi quando me mediram, testaram, cutucaram, ameaçaram e puniram.

“Você é louca!” Disseram.

“Você acabará com sua vida!”

“Você não fará isso!”

“Você está jogando seu futuro fora!” Disseram também.

Sou grata por tudo que me trouxe até aqui! Estas ações me transformaram, devolveram a minha amada determinação, reacenderam a minha motivação e jogaram luz sobre os meus valores e propósito!

Hoje, percebo que foi exatamente essa mudança que me devolveu minha escolha consciente.

A minha vida passou a ser minha novamente.

Meu comportamento voltou a ser natural e, com isso, a evolução voltou a ser constante. Vejo o sucesso acontecendo em pequenas coisas do dia-a-dia e no meu futuro.

A jornada passou a ser clara e… Deliciosa!

Felicidade? Ah, felicidade…

Agora ela permeia meus pensamentos, sentimentos e ações. Ela faz parte dos meus relacionamentos, das minhas palavras e feições.

Olho para o passado e para o caminho, com a certeza de que não poderia ser diferente.

Esse processo me trouxe maturidade e conteúdo para usar com as ferramentas que hoje tenho.

Ao despertar, percebi que a jornada pelo autoconhecimento é contínua.

Liberdade com determinação é uma fórmula explosiva!

Liberdade, afinal!

Como é bom voltar a andar de bicicleta… De preferência rosa.


Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência.

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Patrícia

Imagine uma pessoa que consegue falar com a vida. Conheçam Patrícia: seus desafios, sua superação e o diálogo que ela teve.

(Eu…)

Preciso confessar umas coisas.

Preciso falar, tirar isso do peito.

Chego em casa e sinto o vazio…

Isso acontece há anos.

Constatação.

Só agora, aos 36, comecei a prestar atenção e perceber que o intenso vazio interno transborda para o externo (ou será o contrário?).

Na verdade, sempre transbordou. Transborda tanto que determinou quem sou para o mundo.

Relacionamentos fugazes, temporários, eletrônicos, sem começo ou fim, diluídos numa existência apressada, onde mudam-se os rostos e os corpos que não significam nada, ao final das contas.

Relacionamentos profissionais, pessoais e amorosos se confundem na mesma falta de consistência. Na mesma falta de conteúdo. Na mesma falta de essência.

Tento desesperadamente compensar a falta de qualidade com a quantidade… E só tenho me magoado. Não consigo nada além da superficialidade e me pergunto por que é assim. Eu não entendo! Aliás, eu entendo sim… É tão óbvio… Está na minha cara. Eu não aceito, isso sim. A gente atrai o que transmite…

A vida foi acontecendo a mim e me empurrando para um canto. Tenho feito escolhas a minha vida inteira e só agora me dei conta de que até as escolhas que fiz, quando pequena, tem influência em quem sou hoje. Escolhemos muito mal durante boa parte de nossas vidas e só me dei conta disso agora.

Eu achava que responder aos desafios da vida era a meta de uma existência, mas terminei descobrindo que a realização e a felicidade são irmãs, que elas dependem das escolhas inadequadas que fiz…

As metas, a carreira, a família e as outras pessoas sempre colocadas acima de tudo.

Uma correria constante, uma busca eterna por resultados e agradar aos outros. Um foco doentio no destino, uma eterna reverência.

Quando as metas são dos outros, o destino também. Você termina chegando a vários lugares, mas nunca ao seu lugar. Sempre os lugares dos outros.
Quando o destino é alheio, pelo menos aproveite a jornada.

 

Insegurança.

E a jornada?

Ah, a jornada. Observando o passado, não lembro de quantas vezes olhei pela janela e vi a vida passando, mas não dei atenção porque o resultado importava mais.

Eu queria ter dado atenção à jornada.

Talvez eu não tivesse chegado até o momento presente arrependida. Talvez o destino deixasse de ser importante…

Talvez a jornada se transformasse no real objetivo… E dele eu tivesse extraído mais coisas, mais aprendizado, mais maturidade…

Talvez a minha felicidade não estivesse tão atrelada a momentos externos, pessoas e coisas e estivesse dentro de mim…

Talvez eu tivesse me valorizado mais e provocado toda uma série de consequências positivas em minha vida…

Será que as pessoas passam por minha vida sem tanta importância porque não me dou o valor necessário? Será que… Sou descartável?

Talvez…

(A vida fala…)

Despertar.

Não Patrícia, não! Não é isso!

Olhe-se no espelho e perceba que cada experiência comigo está registrada em uma ruguinha aqui, outra ali. Veja que cada aprendizado está marcado por fora e por dentro! Está na sua cabeça e no seu coração! Faz parte de você e é o seu maior tesouro!

Veja como isso lhe transformou numa pessoa de bom coração, numa mulher linda, que se importa com as pessoas e que quer crescer…

Mas não a qualquer custo! Não passando por cima de ninguém! Que respeita e ajuda o próximo!

Não há matéria mais rica do que essa e você pode mudar o mundo com ela!

Seus valores são sólidos e, a partir deles, você pode, sim, descobrir a sua missão.

Pergunte-se porquê! Pergunte-se até você chegar na resposta mais fundamental de todas, a resposta que sai do seu peito com força e emoção, depois de cavar e cavar… Depois de tantos porquês esvaziarem o seu repertório de desculpas, cortinas, proteções, vitimizações e excesso de auto-indulgência… Tantas camadas colocadas ao longo do tempo… Até você chegar na sua essência e responder com ela!

Perceba o quanto a consciência disso tudo lhe permite agir e mudar ainda mais quem você é! Ainda há tempo! Não foque no que foi… Foque no que pode ser, ainda!

O principal você já tem: beleza interior.

Não nascemos assim.

Nascemos apenas inocentes e vamos mudando…

Mudando por forças internas e externas que vão nos construindo…

Um efeito colateral da sua jornada. Essa beleza está intimamente ligada a cada cicatriz de uma forma mágica, quase que um combustível para lhe mover e transformar cada novo passo em um passo na direção adequada e compatível com a sua nova existência. Agradeça!

(O diálogo entre nós duas…)

Catarse.

Mas as pessoas estranharão minha mudança de comportamento?

Certamente. Você já mudou. Não há como voltar atrás.

Eu me distanciarei naturalmente das pessoas, coisas e situações que faziam parte do meu velho eu e farei novas amizades. Não por conveniência, mas por respeito a mim própria.

Saiba que vai doer Patrícia.

Eu sei… Mas é isso que eu quero. Não é uma questão de certo ou errado. É uma questão de ser.

Quero ser uma nova pessoa. Quero existir, no mundo externo, a pessoa que já sou internamente! Como é libertador ter essa consciência!

Vou começar pelo melhor lugar: por mim mesma. Dando a mim o valor devido. Amando-me. Evoluindo a cada dia, sendo protagonista, colocando para fora o que há de melhor em mim e sem me submeter… Desenvolvendo-me como ser.

(Eu…)

Renascimento.

Pouco mais de um ano atrás, eu não tinha ideia de que minha vida mudaria tanto. Olho para o passado e meu sentimento é de gratidão.

Gratidão por ter chegado em um momento insustentável, onde fui presenteada pelo Universo com ferramentas e lições. Com a capacidade de enxergar o que me era elusivo… Trazendo ao consciente uma existência incompleta, insalubre e tardia, que levou à dor, dor suficiente para provocar a mudança.

Gratidão por ser e me sentir uma nova pessoa! Mudei meus sentimentos, minhas convicções, opiniões e postura. Mudei minhas ações… Passei a existir diferente, melhor! Renasci! SOU uma nova pessoa, uma pessoa melhor!

Agora meus sonhos são de liberdade.  São de leveza, de evolução! São ricos e, ao mesmo tempo, humildes e sinceros… Alinhados com meus valores… Alinhados com a minha vida, permitindo-me ir adiante, aproveitando cada momento dessa jornada fantástica que é a vida.

O destino? Ah, eu tenho certeza de que essa estrada me levará ao lugar que eu mereço… e eu mereço o melhor: plenitude.

(Você…)

Esqueça por um momento a idade… Quantos temos uma Patrícia dentro de nós, talvez em uma ou outra fase?

 


Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.

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Ficção

Lucas

Lucas levanta a cabeça enxugando as lágrimas. Ele tem que chorar quietinho porque “homem não chora”, segundo seus tios.

Repara em uma criança de cerca de cinco anos que passa com o pai ao seu lado, jogando em um iPhone.

“Nossa, estão começando cada vez mais cedo”, pensa.

Ele começa a caminhar para a parada de ônibus e a lembrar de quando tinha cinco anos e só pensava em se tornar um adulto, meio sem saber pra quê. Achava que seria melhor do que ser criança…

Talvez por sonhar em ser bombeiro, astronauta ou piloto de avião, mas não correlacionava isso a ser adulto ou ao esforço, por consequência. Não pensava na jornada.

Quando começou a pensar nela, imaginou que desenvolvedor de jogos eletrônicos seria uma saída interessante. É a única coisa que ele entende e gosta. Parte da fuga.

Agora, com 17 anos, sente-se perdido. Sente-se acuado, entre a cruz e a espada. Quer voltar aos cinco anos.

O relacionamento com seus pais tem dias razoáveis e dias péssimos. Ele ama seus pais, mas em qualidade e quantidade, os péssimos se sobressaem.

Sua vida resume-se a lidar com reclamações: limpar o quarto. Estudar. Enem. Sair do videogame. Sair do computador. Não chegar tarde. Não usar o celular na mesa. Tomar banho. Não dar atenção à família. Chegar em casa cedo… Não necessariamente nessa ordem.

Outro pensamento preenche a sua mente… “Será que tornar-se adulto resume-se a atender às expectativas dos nossos pais e às dos outros?”

Lucas tem medo de decepcionar, principalmente seu pai. As cobranças são quase diárias e as observações dele, doem: “vai ficar sem fazer nada até quando”? Nem sei se você tem capacidade para passar”. A barra está muito alta.

As feridas aumentam a cada patada. A distância, idem.

Tudo que Lucas quer é um abraço apertado. “Tudo vai ficar bem. Vai dar tudo certo e eu estou aqui para lhe ajudar”.

“Por que não me aceitam como eu sou? De todas as pessoas no mundo, os meus pais deveriam ser justamente as pessoas a me aceitar e ajudar. Deveriam ser as pessoas a melhor me entender.”

Mas ele acha que isso é impossível de acontecer. Um sonho distante.

É curioso como os pais tentam ser a referência dos filhos não pelo exemplo, mas pela cobrança.

“Não quero ser mais adulto. Quero jogar meu videogame.”

O jogo é quase seu único refúgio. Lá, vive a vida que quiser.

Fuga perfeita. Ele está acima do peso e mal se relaciona com pessoas no mundo real.

Os pais se perguntam porque os filhos estão distantes e antissociais. Não param para considerar a possibilidade desse afastamento ser consequência da vida merda e cheia de conflitos que levam, com excesso de cobranças e uma necessidade (deles e da sociedade) de que os filhos atendam às suas expectativas. Sobram expectativas e falta apoio.

Lucas chega em casa lembrando da criança de cinco anos.

“Por quanto tempo será que ele conseguirá fugir?”

Entra no quarto, fecha a porta e começa a jogar.

 


Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.