Aviso: este é um texto 16+. Nada que a nossa TV contemporânea já não aborde em qualquer horário, mas se você tem questões com violência e palavrões, sugiro não continuar.
Caceta, que susto! – Júlia escuta uma porta batendo com o vento.
Estranho… pareceu outra coisa.
Enfim… – pensa. Acomoda-se novamente no sofá.
(…)
Um dia antes...
Márcia tem uma arma na cintura.
Enquanto está no coldre, não há ideia de autodestruição… exceto talvez por uma ou outra manifestação perene, como roer as unhas… e arrancar fios de cabelo.
Estresse.
O dia passa numa corrida contra o tempo.
Noites mal dormidas, dias frenéticos em busca de si e de justiça para um passado que não volta.
Autoafirmação desejada e exercida, publicada e reconhecida, nunca alcançada.
Perseverança – valida ela, mentalmente.
Persona, dizem.
Chega em casa, abre a porta.
Ela percebe um vazio, quase repleto de dúvidas.
Seu lar é bem diferente do que sente por dentro.
Descolamento. Eus distintos, interno e externo, percepções misturadas e contraditórias.
Se você entrar em seu apartamento, perceberá uma estética quase impecável.
Coerente.
Cores harmoniosas. Quadros e retratos alinhados à perfeição falam sobre um passado fora do alcance.
Um sofá vinho na frente da TV, um tapete creme confortável… almofadas entre amarelo e vermelho convidam ao ato de se jogar.
Um par de cadeiras sóbrias contrastam com a palheta e com o chão em madeira.
Silêncio.
Mas o sinal de uma eventual mudança é percebido ao focar no horizonte.
Uma varanda fechada com vasos e plantas… esquecidas.
Galhos secos que por semanas suplicaram por água, atenção e que agora combinam ironicamente com as cores da sala.
Será que a estética deste universo contido entre paredes existe apenas pela falta de ação ou esquecimento?
Ou reação?
Ou incômodo?
Eu não sei dizer.
Talvez Márcia saiba, no fundo… mas ignora.
Um ambiente preservado pela indiferença, exceto pela morte óbvia na sacada.
Ela entra no quarto e vê a cama desforrada… como há semanas.
Sente um aconchego tão fulminante quanto a necessidade de livrar-se das roupas que voam em direção ao canto atrás da porta.
O coldre vai ao cofre e, no exato momento em que vê a sua mão depositá-lo naquela caixinha, lembra de algumas das cenas marcantes e insolúveis que permeiam o seu dia a dia. Hoje foi especialmente difícil.
Preciso de uma ducha – pensa.
Depois de experimentar talvez o banho mais quente da sua vida, ela cai na cama com o celular na mão, na intenção não realizada de criar, estimular ou manter alguma relação social com qualquer pessoa que seja… mesmo através de uma tela de poucos centímetros… um aparelhinho repleto de imagens, letras e sons que deixam de fora tudo aquilo que ela mais precisa no momento:
Um toque, um abraço e a presença silenciosa de alguém.
Há uma desconexão em andamento por meses. Há uma separação de quem é do que representa. Da imagem que passa.
Mas antes que quaisquer interações tenham a chance de ocorrer, a agitação mental cede ao inconsciente e ela apaga.
(…)
De repente, um susto: como que sendo abduzida do corpo mais ao contrário, o som odioso do despertador acontece.
Que merda.
Sete horas de sono não são o suficiente.
Não têm sido, pelo menos para ela.
Não sente nem que dormiu.
A cozinha de Márcia é uma verdadeira ode ao prático e ao eficaz, junto daquilo que, na sua concepção, é o mais efetivo para tirá-la do torpor matinal.
Cambaleante, pega um café e o celular.
Vinte e duas mensagens, um story sorridente nas redes sociais e três canecas de café depois, sente que acordou. Morde uma maçã e abre um energético, seu companheiro até a delegacia.
Banho, roupas, maquiagem, aparência perfeita.
Trinta minutos se passam do salto do sofá vinho à chave na porta de casa.
Entre um e outro, tira o coldre do cofre, olha para a sua mão novamente e lembra como será, até o fim de mais um dia.
Mas não hoje.
Hoje será diferente.
(…)
Não dá para saber em qual momento exato, entre a lembrança antes de sair de casa e o fim do dia, que as coisas começaram a ficar estranhas.
Dor no estômago.
Mãos suando.
Ela enxerga o mundo à sua volta e sabe que ele está lá.
Mas parece distante… distorcido, surreal, sons abafados.
Lembra quando experimentou alucinógenos aos quinze anos pela primeira (e última vez).
Se eu contar a você os detalhes (sórdidos) do dia dela, não fará diferença.
Entre o sangue (literal), o suor (desconfortável) e as lágrimas (quase sempre contidas), um caleidoscópio de emoções reprimidas gira dentro dela, dando sentido à sala intocada, à cama desforrada e à natureza morta da sua varanda.
Os minutos passam, as ocorrências acontecem e a realidade se dissolve em um choro velado e breve no banheiro.
Eu não aguento mais.
Olha-se no espelho, prende o cabelo. Enxuga o rosto.
Sai dali talvez menos do que entrou, mas decidida.
O desenrolar das horas acontece tão indiferente quanto se sente agora.
Decisões têm essa característica… de serem efeitos colaterais de emoções que provocam catarses, mudanças profundas e resolutas que trazem tranquilidade e calma.
Vou por um fim nisso ainda hoje… à noite.
(…)
Júlia reinicia a sua série favorita, mas não acredita na fofoca contada pelo barulho que ouviu da suposta porta do corredor.
Devagar, sai de casa… e vê a porta do hall aberta.
Mas a porta de Márcia também está aberta.
Neste exato momento, o ar fica rarefeito e foge do pulmão, assim como o sangue parece desaparecer das suas extremidades.
O frio dá uma volta em todo o corpo e concentra-se no peito e no estômago.
Júlia já tinha sentido essa mesma sensação ao pular de paraquedas.
Ela abre imediatamente a porta e grita por sua vizinha… olha a cozinha, a sala e não encontra ninguém.
Desespero.
Puta que pariu.
Entra no quarto e vê a cena… um quadro incompreensível.
A emoção é tão forte e densa que quase dá pra cortar com uma faca:
Márcia está sentada na cama, chorando compulsivamente com a arma na mão direita e, diante dela, um espelho perfurado pelo disparo.
Ela morreu hoje – balbucia entre lágrimas… quando finalmente ganha o abraço silencioso que merece.
(…)
O coldre com a arma dentro é uma lembrança distante, bem como os arrepios ao tirá-los do cofre.
Márcia lembra, contudo, do momento em que decidiu tirar a vida para finalizar o sofrimento.
Ela lembra da paz e da calma que sentiu do momento da decisão até o instante em que, ao invés de executar o plano, por algum motivo ainda desconhecido, mirou no espelho.
Sem querer, acabou com aquela imagem distorcida de realidade e de identidade.
A mesma decisão que trouxe a calma e apaziguou momentameamente a dor, mostrou o caminho.
De fato, capaz de criar uma jornada completamente nova… que ela passou a viver, apesar de não se sentir especialmente grata por estar viva… mas por ter mudado.
Mostrou que a centelha de mudança dentro dela, que trouxe tranquilidade, também torna possível alterar a própria estrada.
“Márcia” é uma ficção. Qualquer semelhança com fatos, ocorrências, nomes, pessoas ou situações da vida cotidiana ou do passado é mera coincidência. A escolha do nome da crônica foi baseada na lista de nomes mais comuns no Brasil, divulgada pelo IBGE.