Quando recebi aquela mensagem pelo LinkedIn no dia 15 de fevereiro de 2021, meu coração explodiu de emoção.
Um misto de felicidade, medo, apreensão, incompetência, competência, utilidade (e inutilidade)… um verdadeiro caldeirão de sentimentos e conceitos conflitantes.
Sensação de incompetência pelos 14 meses sem emprego; competência pelo reconhecimento do trabalho realizado no passado; utilidade pela associação imediata entre trabalho e existir.
Será mais uma entrevista infrutífera? Será mais uma das centenas de candidaturas que não dão em nada e não recebo nem um posicionamento?
Foram 14 meses de questionamentos.
Em 15 dias, estava empregado. Foi um presente de aniversário pensar em um contracheque, ainda mais em um lugar agradável e acolhedor.
Comemorei o aniversário (e o emprego) fazendo um jantar e, para meu pai… bem, talvez ele tenha entendido pouca coisa. Mas entendeu o suficiente.
Recebi uma educação extremamente utilitarista. Ele, como ex-militar que viveu uma guerra mundial quando criança, educou para “os rigores da vida”. Educou no viés da associação irremediável entre existir e ser útil.
Não lembro quantas vezes enfrentei a depressão desde a primeira crise em 2001. Tive que filar das minhas declarações de imposto de renda e só tenho registros de 2007 para cá. Incluindo os anos sabidamente problemáticos e considerando tratamento psiquiátrico como evidência, temos:
2001, 2002, 2003, 2004, 2005, 2006, 2007, 2008, 2013, 2014, 2018, 2019, 2020, 2021.
Aí, inclui anos em que estava em crise e anos onde paguei um profissional (ainda bem, tive condições), de acordo com as declarações.
Caraca, 14 anos?
De 20 anos, não vivi 14 em crise. Fiz pesquisa semelhante para o meu livro e concluí que, crises mesmo, foram 5 (2001, 2005, 2012, 2018 e 2020), praticamente todas relacionadas a emprego e relacionamentos.
A utilidade. A prover… e não conheço algo que afete mais o senso de utilidade e provimento do que uma depressão.
Senti-me um fracasso ao escrever esses anos aí em cima. A realidade batendo com força essa lista na minha cara, quando enfrentei uma condição por muito mais tempo do que gostaria e quando tornei a vida de muita gente um desafio (pra ser light).
Entretanto, quando me deparei com o conteúdo de Brené Brown pela primeira vez, algo em seu livro atraiu a minha atenção irreparavelmente.
Ela iniciou suas pesquisas sobre vergonha e vulnerabilidade no contexto feminino ainda na década passada, até receber a visita (e um comentário) masculino, quando expandiu sua atuação.
Essa passagem caiu como um raio na minha cabeça:
Claro que o livro contextualiza muito bem a situação e a pesquisa da vida da autora (leitura recomendada, inclusive). Mas é fato que vivemos na sociedade da produtividade, do resultado e do esconder fraquezas a qualquer custo.
Quando li isso anos atrás, comecei a refletir sobre a associação da sensação de utilidade com realização, felicidade e depressão.
Ano passado (2020), essas reflexões ficaram bem mais contundentes.
Não é razão de ser deste texto falar que homens são especiais. Pelo contrário. A questão, como bem coloca a autora ao longo do conteúdo que produziu a partir das suas pesquisas, é que essa situação descrita é apenas uma dentre tantas que existem no intuito de marginalizar a fragilidade, a vergonha e a vulnerabilidade, associando-os à fraqueza.
Trata-se de algo ainda mais perigoso se considerarmos a associação do conceito de erro ou falha à fraqueza também.
Quando decidi produzir conteúdo sobre a depressão em 2016, a vergonha tomou conta de mim e eu tenho a plena certeza que ela toma conta de cada uma das pessoas que enfrenta a condição. Vergonha de parecer frágil e vulnerável. Fazemos o impossível para esconder tudo isso do mundo criando uma persona muitas vezes bem longe das capacidades e da realidade do ser humano.
Cada um de nós tem fraquezas. Tem vulnerabilidades, erra e fracassa. Somos seres imperfeitos produzindo imagens ideais de perfeição para o consumo alheio na prateleira da sociedade, mas isso é algo impossível de sustentar em longo prazo.
Não descreverei aqui o fantástico trabalho de Brené Brown; peço com a devida reverência o seu argumento emprestado para afirmar que o ato de prover e sentir-se útil (“produzir”) são algumas das minhas vulnerabilidades. Adoeci por causa disso e é algo ainda em sedimentação dentro de mim.
No ano passado, no meio da pandemia e sem emprego, o que mais me atingiu foi a concepção de não estar sendo útil.
Logo no início de 2020, com a primeira quarentena, tomei a decisão de criar mais para as redes sociais. Voltei a escrever aqui com mais frequência, produzindo mais provocações no Instagram e até movimentando um canal no YouTube. Em paralelo, consumi dezenas de livros, um hábito há muito negligenciado.
Eu sabia desde o início do ano passado que essa atividade intelectual poderia eventualmente inspirar ou ajudar alguém. Mas confesso, a prioridade era me sentir vivo.
Acredito que o objetivo foi de certa forma alcançado, mas sobrou um gosto amargo na boca.
A realização de que, para mim, a felicidade talvez dependa da sensação de ser útil.
A compreensão de que a associação de felicidade e utilidade com sentir-se vivo liga incondicionalmente ser útil a existir e, diante do afastamento físico das poucas pessoas próximas, expor a vida nas redes sociais foi usado como ato em prol dessa existência.
O contrário, a suposta solidão, percepção de uma existência não observada, compreendida como nula.
Sim, eu sei. É aqui que comumente a pergunta vem à mente: viver para quê?
Então, a recolocação aconteceu.
A utilidade, da noite para o dia, fez-se presente: luz, guia, realização e sim, um pouco de felicidade.
Hoje, pego-me pensando sobre o tema sem aceitar essa associação, por mais que reconheça os seus efeitos práticos. Pergunto-me se não há aí um mecanismo ou argumento milenar em ação. Acho que sim.
Recuso-me a aceitar que a felicidade dependa de sentir-se útil, fazendo uma distinção importante entre utilidade e ação (algo já abordado ao longo da história por tantos filósofos como Sartre e Viktor Frankl).
Então, lembro-me do livro “A Sociedade do Cansaço“, de Byung Chul Han, mentalmente associando a “utilidade” às atribuições do “sujeito de desempenho” descrito na obra.
E putz, faz um sentido absurdo.
E sabe quando esses questionamentos internos ficaram mais fortes?
Quando percebi, ainda no primeiro mês de volta ao trabalho, que não só as minhas postagens nas redes sociais caíram em frequência, como comecei a desenvolver uma rejeição a elas, em especial ao Instagram.
Será que substituí o esforço de me sentir útil através da produção de conteúdo por um emprego formal?
Será que cansei das personas perfeitas e irretocáveis, das imagens icônicas de bundas, peitorais, músculos, filtros, bens e bem-estar fabricados?
Será que… quando a gente percebe a fábrica viciada de certas coisas, não dá pra “desver”? Não dá pra ir contra valores e consumir algo que bate na trave?
Não seria essa uma reação de manutenção de uma zona de conforto sobre a qual tanto já escrevi aqui?
Ainda é cedo para responder.
Não obstante, a sensação de sentir-me útil e acolhido profissionalmente tem a sua valia.
Posso recusar-me a aceitar essa realidade, mas ela existe e sinto seus efeitos.
Então, que seja, por enquanto, a comemoração dos dias 15 de fevereiro e 1o de março de 2021.
E que eu possa olhar para o meu imposto de renda em 10 anos e ver os pagamentos para terapia com uma sensação de conquista e superação, desassociado da ideia das crises de depressão.
Quem sabe, lá, terei uma percepção mais clara do direito de existir, diferente de uma condição de utilidade.
Eu quero ter esse direito sem precisar de nada mais. Afinal, se é um direito, não há condições.
Agora, preciso descobrir se as condições são auto impostas.
Aliás, será mesmo um direito?
Parece-me uma conquista individual e diária.