O exercício da nossa essência está no discurso, quando ele exemplifica a articulação da imaginação, ideias, criatividade, consciência e… talvez o consequente debate permita o surgimento de uma nova entidade narrativa colaborativa não mediada.
Formação de opinião sem a presença do outro ou dos outros é doutrinária, absolutista e dogmática.
É masturbação.
Já a formação da opinião com a presença do(s) outro(s) em um ambiente franco, olho no olho (se possível), mas com o reconhecimento da presença de uma identidade distinta e sem mediação, produz uma narrativa com vida própria.
Aqui, entenda que qualquer manifestação em rede social que chega à você é mediada.
Se por um lado não existe uma regulação da sua mente, dos seus dedos, do teclado ou do botão de post, a sua mensagem passa por uma curadoria sempre.
Portanto, não existe discurso nem debate em rede social, nem a construção de uma narrativa nova não mediada.
O que existe?
Divaguemos… pois sempre há manipulação.
“A coisa mais poderosa no universo… ainda apenas um fantoche.”
(Laurie Juspeczyk / Espectral II)“Todos nós somos fantoches, Laurie. Eu apenas sou um fantoche que consegue ver os fios.”
(Doutor Manhattan)”
Primeiro, entendamos que “discurso” exige sujeito e sujeitado (ou predicado, se preferir).
Debate, da mesma forma.
Ambos são construções que exigem duas coisas: consciência de si e do outro (aqui, “alguém”, indivíduo reconhecido e que reconhece-se como tal, com identidade e exercício de si).
A partir da interação dessas partes e em segundo lugar, há a construção de uma narrativa que exprime essa interação.
Ela é resultado direto da convulsão, do atrito, da mescla, do confronto, da sedição, da negociação, recomposição e até da comunhão que eventualmente surgem, quando a confluência das expressões mantém-se no âmbito das ideias.
Os termos acima parecem não se encaixar com a proposição de comportamento.
Eu sei, para muitos deles se manifestarem, há a necessidade de uma boa parcela de identidades e ego coloquial em conflito.
Exatamente: o desafio é justamente esse, manter-se no nível das ideias, esforçando-se para que o exercício egóico não seja o ator principal.
Em terceiro lugar, o reflexo da narrativa resultante, que muito tem do construtivismo, exerce um poder de construção de realidade que permite às partes a formação de opinião.
Há, neste momento, o emprego das identidades exercidas como senso crítico.
Há a pura translação da individualidade na interpretação da narrativa resultante, montando o quebra-cabeças de uma ou mais opiniões bem formadas.
Temos então um balé.
Uma dança, um ritmo, uma organização de fatores que desafia a entropia.
Por fim, chegamos ao ápice da interação humana: o cúmulo da abstração, da interatividade, da pessoalidade formando o fruto da criatividade através da diversidade.
Temos a imaginação exercida socialmente, algo novo surgido de personalidades que, por mais que contenham nuances, arestas e ressalvas, fazem destas o tempero do que surge.
Mas nada disso se faz presente na atualidade.
Nada disso dá luz a novos conceitos que tomam por base o debate, o discurso e a existência sem filtros exercendo a mais pura essência humana… porque o existir, hoje, é mediado.
Sim, uma existência terceirizada à um plano digital mediado, manipulado e plasticamente idealizado como objetivo perfeito a ser eternamente perseguido e nunca alcançado.
Será então essa a nova essência?
Chamo especial atenção à mediação em questão simplesmente porque o conceito foge à percepção de uma sociedade não só que se permite, mas que fomenta.
Substituímos o exercício de quem somos por uma imagética desenvolvida por terceiros, para nós, através de procurações cegas.
Criamos exercícios manifestos em benefício do que nos agrada e em detrimento daquilo que está contido em nós obrigatoriamente, mas que causa desagrado.
Há a aceitação da mediação… porque ela encontra o nosso desejo de existir em perfeição através da manipulação da imagem pública.
Enquanto aceitamos sem identificar essa mediação, como quem troca um espelho pelas riquezas da terra, o que antes era privado tornou-se público na aceitação.
E não há volta.
Não há retorno à inocência, muito menos à percepção de identidade, que acaba não só manipulada, mas distorcida frente aos interesses de terceiros.
Finalizo esse ensaio com um apelo a você, leitor.
Entenda o que vem a ser mediação em um ambiente digital de redes sociais e exercícios manipulados.
Temos um teatro de manifestações públicas de supostas individualidades que coletam seguidores, likes e comentários… engajamento como exercício mensurável da atenção alheia capturada e direcionada… sendo que a talvez única coisa autêntica é a manifestação contida em si, nada mais.
Dela até você, há um sem número de intermediários que descartaram, adicionaram, filtraram, modificaram e curaram não o que quer, mas baseado no que queira, o que querem.
Não, não é sobre você. É sobre o que fazem com o que você quer.
Quem detém essa cadeia de eventos controla bilhões de pessoas.
Retornando à citação do início, parafraseando Dr. Manhattan:
Todos somos marionetes. A diferença é que alguns conseguem ver as cordas.
Sim, estou falando especificamente de cada tweet seu, foto, postagem no face, no insta, no tiktok, no linkedin… cada comportamento seu que mudou porque a reação pública ao conteúdo “exigiu” de você um comportamento levemente distinto de quem é… para garimpar visualizações, likes, mensagens ou até empregabilidade.
Eventualmente, mentiras embaladas em metal precioso que assumem o valor da média social.
Talvez não haja negligência. Talvez haja apenas uma mudança existencial na nossa essência e… sendo incapaz de percebê-la, revelo-me escrevendo em um blog que, para não ser mediado, precisa ser pago e mantido com muito suor e esforço. Percebem agora a questão, de forma bastante direta?
Não é à toa que você vem aqui, lê conteúdo desde 2016, 2017 e nunca viu um banner, uma propaganda ou uma coleta de dados escusa.
Não é à toa que consegue ler a opinião e a concepção de mundo de alguém sem intermediários ou mediação, só possível em um meio digital hoje em dia se completamente bancado de forma independente.
É meu @migo l3itor, o desafio está cada vez mai0r em escrever exercíci0s de 7ensamento que não c0ntenham pontos e números nas p@1avras s3ns1ve!s para fugir da demoção do a19oriTm0.
Sim, é claro… óbvio que o último parágrafo é pura ironia, mas uma ironia deliciosa de usar e toda vez que vejo postagens no Instagram trocando letras específicas de palavras supostamente sensíveis para não perderem exposição na rede: percebo a situação como máxima epítome de tudo o que cabo de descrever aqui.
Bem-vindo à nova realidade… ou você via aquelas postagens no Insta com escritas querendo esconder palavras críticas com essa irônica nova forma de comunicação fugindo da perseguição algorítmica e não entendia nada?
Leitura recomendada:
A Era do Capitalismo de Vigilância, Shoshana Zuboff: https://amzn.to/3cKNZeh
Algoritmos de Destruição em Massa, Cathy O’Neil: https://amzn.to/3fF4LxA
Hiperculturalidade: Cultura e Globalização, Byung-Chul Han: https://amzn.to/3Cf3gxH
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